A Câmara dos Deputados aprovou a criação de uma renda básica de emergência para proteger a população mais vulnerável aos impactos econômicos da epidemia do coronavírus. A medida é parte do projeto de lei 9.236, de 2017 e foi aprovada em 26 de março, após negociação relativamente rápida e que envolveu diferentes partidos e organizações da sociedade civil.
O Senado aprovou nesta segunda-feira, 30 de março, o projeto de auxílio emergencial de R$ 600 podendo chegar até R$ 1,2 mil.
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NOTA TÉCNICA DO DIEESE Número 230 / 30 de março de 2020
A renda básica de emergência
O PL 9.236/2017 instituiu um benefício emergencial de R$ 600,00 mensais para os trabalhadores maiores de 18 anos de idade, que se qualifiquem ao recebimento, limitado a dois por família (R$ 1.200,00). A mulher que for provedora de família monoparental terá direito a duas cotas do benefício, de modo que fará jus a R$ 1.200,00, mensais. Os beneficiários do Programa Bolsa-Família poderão optar pelo benefício emergencial durante o período em que este for concedido, caso seja mais vantajoso.
O auxílio será concedido por três meses a partir da publicação da lei, mas esse prazo poderá ser renovado por ato do poder Executivo. Ou seja, não será necessária nova deliberação do Congresso para que esse prazo se estenda, lembrando que o Decreto Legislativo nº 6, aprovado em 20 de março de 2020, autorizou o estado de calamidade pública em razão da epidemia do coronavírus (Covid-19) até 31 de dezembro de 2020.
O benefício visa garantir renda a trabalhadores que são microempreendedores individuais (MEI), trabalhadores informais ou inscritos no Cadastro Único das Políticas Sociais do Governo Federal, o CadÚnico, o que inclui os beneficiários do Programa Bolsa-Família. Assim, ele será concedido a trabalhadores que preencham os seguintes requisitos:
- não tenham emprego celetista ou no setor público, sob qualquer regime jurídico;
- não estejam recebendo benefício previdenciário e assistencial, bem como ao seguro desemprego; e
- sejam trabalhadores informais, inscritos no MEI ou não, bem como aqueles que estão relacionados no Cadastro Único, que executa as políticas de proteção social, ou ainda os contribuintes individuais do Regime Geral de Previdência Social1.
1 Não abrange os contribuintes facultativos, mesmo os de baixa renda pois estes não desenvolvem atividades econômicas.
O projeto de lei aprovado também condiciona a concessão do benefício a um critério de renda familiar: ela não pode ultrapassar a meio salário mínimo por pessoa na família ou ao total de três salários mínimos. Além disso, o beneficiário não poder ter auferido renda tributável superior a R$ 28.559,70 em 2018, o que equivale a aproximadamente 2,3 salários mínimos da época (R$ 954,00 mensais). O texto do PL trata a renda de forma ampla, como o somatório do rendimento bruto de todos os membros da família, excluindo apenas o valor de Benefício de Prestação Continuada eventualmente recebido. Em suma, há duplo corte de renda, que pode deixar de fora a parcela de trabalhadores por conta própria de renda mais elevada, mas que também precisaria de proteção social nesse momento de suspensão total ou parcial da atividade econômica.
A comprovação da renda será realizada de duas formas. Para os requerentes que estiverem cadastrados no CadÚnico, este já dispõe de informações sobre a renda, que poderá ser verificada rapidamente para fins de concessão. Em relação aos que não estiverem cadastrados, vai valer a autodeclaração da renda, o que agiliza a concessão e evita que o trabalhador/a fique desprotegido por uma questão operacional. Além disso, há informações de que se planeja disponibilizar um aplicativo que permita o cadastramento, a fim de evitar aglomerações.
A operacionalização e o pagamento do benefício serão de responsabilidade de instituições financeiras públicas, que deverão abrir automaticamente contas em favor dos beneficiários, com isenção de tarifas de manutenção e direito a uma transferência bancária grátis por mês.
Estima-se que esse programa tenha potencial de proteger 120 milhões de brasileiros, contando não apenas os adultos, mas também as crianças e demais dependentes das famílias. Apenas no CadÚnico, atualmente, há 77 milhões de pessoas em cerca de 29 milhões de famílias, entre as quais cerca de 13 milhões já são beneficiárias do Bolsa Família2. Trabalhadores informais adultos (18 anos ou mais), compreendendo os assalariados (nos setores público e privado) e as empregadas domésticas, os dois grupos sem carteira, os que trabalham por conta própria e trabalhadores auxiliares às famílias (que ajudam os familiares no trabalho, mas não têm remuneração), que não recebem BPC, benefício previdenciário, Bolsa-Família ou benefícios de outros programas sociais do governo nem seguro-desemprego totalizam 35 milhões. E os desempregados nessa faixa etária e que não recebem benefícios somam 9,7 milhões. Em suma, esses números reforçam a percepção de que o benefício aprovado na Câmara tem amplo potencial de cobertura da população mais vulnerável aos efeitos negativos da epidemia.
2 “Nota técnica da campanha Renda Básica que Queremos sobre uma Renda Básica Emergencial voltada aos mais desprotegidos durante a pandemia do Coronavírus”. 23 de março de 2020
Comparação com as propostas do governo e das centrais
Ao aprovar o PL, a Câmara dos Deputados tomou a iniciativa de instituir, com melhorias, uma medida anunciada e não implementada pelo poder Executivo até o momento. Em 18 de março, oito dias antes da votação na Câmara, o governo anunciou que criaria um auxílio emergencial de R$ 200 por pessoa, “durante três meses, para apoiar trabalhadores informais, desempregados e microempreendedores individuais (MEIs) que integrem família de baixa renda”. Além do valor ser 1/3 do que a Câmara fixou, o benefício estaria restrito aos inscritos no CadÚnico.
As Centrais Sindicais, por sua vez, apresentaram proposta de benefício semelhante, porém de cobertura mais ampla e valor próximo do que foi aprovado. A cobertura seria mais extensa porque a concessão não estaria limitada pela renda familiar, incluindo todos os adultos que tivessem registro no Cadastro de Pessoa Física (CPF) na Receita Federal. O valor proposto era de R$ 500,00 por adulto, sem limitação também para o número de beneficiários por família. Da mesma forma que o PL aprovado, os beneficiários do Bolsa-Família teriam o valor do benefício igualado à renda de emergência universal. Ou seja, há uma nítida convergência entre o que foi proposto pelas Centrais Sindicais e o que foi aprovado na Câmara.
Outros pontos aprovados no PL
O projeto de lei 9.236/2017 também alterou a lei da Assistência Social, no que se refere ao limite de renda familiar per capita para a concessão do Benefício de Prestação Continuada, que atende a pessoas com deficiência ou idosos com 65 anos de idade ou mais. Em março deste ano, foi aprovada lei elevando o limite de renda de ¼ para ½ salário mínimo por pessoa da família, como critério para a concessão do benefício. Para evitar o impacto fiscal dessa elevação, que amplia o número de beneficiários potenciais, a Câmara decidiu no PL manter o limite atualmente em vigor até o final deste ano, deixando para elevá-lo somente a partir de 1º de janeiro de 2021.
Outros dispositivos do PL excluem do cálculo da renda familiar o BPC ou benefício previdenciário recebido por um membro da família para a concessão de benefício a outro requerente. Também autoriza o pagamento de mais de um BPC a membros de uma mesma família, embora não seja admitida a acumulação de benefícios previdenciários ou assistenciais pela mesma pessoa.
O PL ainda prevê que os requerentes do BPC receberão antecipadamente o benefício de R$ 600,00 por mês enquanto têm o requerimento analisado pelo INSS, ou até três meses, o que ocorrer primeiro. Com isso se confere maior agilidade no provimento de uma renda de emergência ao público beneficiário do BPC. De maneira análoga, também será antecipado um valor mensal de um salário mínimo aos trabalhadores que recorrerem ao auxílio-doença do INSS, por três meses ou até que a perícia médica faça a avaliação do pedido.
Cabe também salientar que, em um dos artigos, o projeto determina que o empregador poderá descontar da contribuição previdenciária o salário pago a trabalhador empregado incapacitado para o trabalho por contaminação pelo coronavírus nos primeiros 15 dias de afastamento. Esse desconto está limitado ao teto do salário de contribuição do INSS.
Considerações finais
A aprovação do projeto de lei pela Câmara deve ser vista como positiva pois responde a um dos mais sérios problemas surgidos com a propagação da epidemia: como proteger os mais vulneráveis da perda de renda que decorre das medidas de enfrentamento da crise sanitária, tais como interrupção de atividades, distanciamento social, quarentena etc. Em especial, os trabalhadores por conta própria que não dispõem de poupança ou de proteção da legislação trabalhista e previdenciária e podem perder a renda. Esses trabalhadores estão posicionados nos estratos sociais de menor renda e muitos deles estão inscritos ou são beneficiários do Bolsa-Família. Portanto, a renda básica de emergência tem um grande alcance social para quase metade da população brasileira, justamente a mais carente de medidas protetivas.
Mas essa medida tem alcance ainda maior, quando se a analisa pela ótica macroeconômica. Ao transferir renda para famílias com menor poder aquisitivo, garante-se que o nível de consumo e, portanto, de demanda, não se contrairá tão fortemente como ocorreria. Essas famílias irão gastar esses recursos para adquirir bens essenciais, principalmente alimentos, produtos de higiene e limpeza, medicamentos, entre outros, ativando a circulação de bens e sua produção. Ou seja, estará ajudando a conter o impacto recessivo e as consequências negativas sobre o emprego e a renda.
É importante destacar que a aprovação do PL deixa de lado o mantra da austeridade fiscal (restrição dos gastos públicos), que já tinha se mostrado ineficaz em promover a retomada do crescimento da economia, e que agora se tornou completamente anacrônica. Mas ainda é preciso insistir que a retomada futura do crescimento econômico passará por uma ação mais assertiva do setor público, com retomada de investimentos e de reconstrução da capacidade do Estado para implementar políticas públicas.
O projeto de lei aprovado pela Câmara não deixa de conter algumas lacunas. A primeira delas é que o prazo de três meses provavelmente ficará aquém do necessário se forem confirmadas as projeções de queda nos níveis de atividade e de emprego que estão começando a ser divulgadas. A segunda é que o limite de renda pode excluir outros trabalhadores por conta própria, que também foram privados do próprio sustento de forma abrupta e não contam com poupança para essa difícil travessia.
A terceira lacuna é que o texto aprovado não dispõe sobre a proteção aos trabalhadores assalariados do setor privado que estão sujeitos ao desemprego pelos mesmos motivos que afetam os informais. As medidas sanitárias, a paralisação de várias atividades e a queda na demanda farão aumentar o desemprego. A legislação atual não está adequada para responder à suspensão de atividades, à redução no grau de utilização da força de trabalho e também ao prolongamento da condição de desemprego por parte dos trabalhadores que estão desempregados atualmente ou da possível dispensa de um novo contingente de pessoas nas próximas semanas e meses Espera-se, agora, a aprovação urgente, no Senado Federal, das medidas aprovadas na Câmara dos Deputados, para possibilitar a sua imediata aplicação.